quarta-feira, maio 18, 2005

Emília com arabescos violeta, cabelo longo delineando seu perfil, qualquer caligrafia ao longo das paredes mortas, dos anteparos.
Emília dos passos lentos, das cadências, dos medos pueris de aparência, dos cantos em silêncio, dos esforços contidos e orgulhosos.
Emília dos eternos sorrisos, de uma vida feita e desfeita, de um receio primordial, esta, a Emília calada, que quer se deixar tocar pelo eterno amor, pela eterna paixão de suas coisas.
Emília moderna, a pensar em qualquer coisa que não me interessa, a me esquecer completamente perante as inúmeras seduções da vida suburbana.
Emília, a bela, a desconjuntura das horas, a senhora das palmas, valente e desdenhosa, madura e recatada, plantios de colheita infinda, sabor que colabora com as memórias.
Emília, futuro fruto de minha dor, necessidade de amor e morte, mariposa na lâmpada forte.

terça-feira, maio 17, 2005

Descemos então, pela virada das pedras. No ângulo certo, bruto mas esperado, tomamos a curva e abrimos caminho no mar aberto. Azul tremente no além, espaço infinito. A respiração livre, podíamos ora contemplar os dois mundos e rever o abismo espectral fatiado, a matéria fendida, fundamental anteparo da existência, primeira ponderação divina.
Fomos pela ida do caminho, como sempre, inaugurado. Vento bom, o leste, e a corrente a nos saudar, naquele tempo. Preparávamos a grande viagem, estreito e desconhecido caminho, à espreita, era tempo de deixar. Nossos idos esperavam, mesa posta, serventia. Abundância que nos fortificou e desfigurou em nossa própria obediência. Éramos pura necessidade, gota d'água.
Chegamos à selva escura. Faltos, rendemos homenagem ao mar, salgando os olhos e o fôlego. Sentimos a leve vertigem dos novos ares e empenhamos então a subida, nado pleno. Voltas e voltas, ômega. Deixei o fato e perseverei no caminho, água dura. Sentíamos agora só o cheiro da vida.
Plenipotência.
Irmãos meus morreram, porque assim quis o Peixe.
Amor que tínhamos era agora espremido na alcova de riacho. Festim da primavera, cachos de uva nos nossos estômagos regelados. Despido do trivial, não me foi permitida lembrança. A bem dizer nada. Potência, única, em transformar o que éramos em que seríamos. Alternadas vozes dos povos, aquilo que nos diz respeito.
Precisamos nesse dia, claro e cristalino. Deitamos o coração na pedra e esperamos.

quinta-feira, maio 12, 2005

Cherchez-la

Melhor assim como sempre esteve: lúcida e translúcida. A cada dia nasce e morre de rir, efeméride de tempos idos. Burlando as entrevistas fastidiosas, a rata ignora a burocracia. Ela sim, nasceu para ser livre na terra de ninguém. Sobre as pontes da ira, revira condições, anula infortúnios. É uma entidade, lei severa da vida.
Em verdade, não saberia dizer quem é uma. Rata breve e jocunda. Volta de onde sempre veio, nesse dia imenso, a carpir minas e minas. Semblante boboca, por vezes a mostrar descaso onde só acaso predomina. Rata-coelha a roer cortesia - a dor célere da fantasia no átimo das nossas rotinas - que então enfia-se vagabunda por ladrões da grã-finagem. Espia, late, afunda. Goza no saber barato de frescas notícias, quando não as patrocina.
Batista de tanta carnificina, perdoa a todos por dia, como mais um. Viola a carne de sua amiga, na beirada da esquina, sarjeta em que pechincha luxos. Perdulária e rancorosa vagina. Verdugo de tantas dores, porque sente suas as de outrem. Mastodôntico medo cristalino de longas narinas.
Essa rata é maldita, lazarenta. Eterna proveta abortiva. Contagem dos mortos entre os vivos, em classificação preventiva. A mistura composta de ontem e hoje abarca continentes e alimenta as serpentes. Enquanto vive rata, viva o número, viva a excrescência das latitudes contábeis, viva o absoluto credo dos amálgamas comunicativos, viva a comanda distraída, viva a néscia capacidade, o julgar oportuno, a imitação comedida, o diminuto cérebro.
Coração dirimido, em zonas. Acabada a grande farsa e o riso. Tétrica fachada, ratazana câncrea. Drama consumido.
É ser assim todo dia, como se não acabasse, atual efeméride. Lúcida e translúcida, como sempre: escapulida.

quarta-feira, maio 04, 2005

Vermelho

Josephus, José. Zé Bento na invernada. Nunca tentou e conseguiu, depois de o tempo. Hoje, é classificado, branco, inter pares. Sonho de muitos, nem todos capazes.
Tetragrammaton.
Longe de muitos, a cor sagrada, nossa vida salva. Blute nur, ó infinita bondade, felicidade das lágrimas, Verdade. De vinícolas eternas, parábola complexa que o estulto intui. Tempo certo, gratidão santa de seu povo.
Povo que me entristece. Longo corpo, tentáculos. Cor agreste de profundidades, onde nosso pão é amassado. Vísceras odiosas, vermes do ocaso. Há os entre vós condenados, formadores de um segundo Vaticano. Vergogna. A comunhão dos desalmados, o verbo solto em papas largas. Vermelho no galero a cofiar as barbas. Quem o concedeu, mistério perene da humanidade.
Voltas, um pássaro. Belo cantar, irmão meu, beleza pura, imagem-semelhança. Vestimentas que o deram nome. Votos de submissão à especificidade, in natura. Vocação ao alto, curtas asas, pouco peso. Amor de um pobre em sua cela. Repouso.