segunda-feira, setembro 05, 2005

Prefácio

Este é um blog sobre metamorfoses. Não há razão, apenas é. E talvez seja a única coisa imutável que aqui se encontrará.

As metamorfoses existem, em inúmeros níveis, e qualquer ser existente está sujeito a elas. Mas este não é um blog científico, também não se pretende partidário de qualquer linha de entender metafísico. Apenas é a demonstração de coisas impossíveis que realmente acontecem na esfera das possibilidades materiais. De fato, que uma coisa se transforme em outra coisa qualquer ela que seja é uma possibilidade material aliada a um princípio de transformação poderoso, operante nesse sentido. Esse princípio sim, via de regra, foge à ciência empírica, que nada mais é do que uma excrescência da real ciência, cujo entendimento tampouco é o escopo deste blog.

Existem três tipos de metamorfoses, de acordo com esse princípio indutivo: quando o próprio sujeito da metamorfose é quem opera sua transformação; quando essa transformação é passiva e quem a realiza é um outro ser existente e, finalmente, quando essa transformação é passiva e o princípio é transcendente à percepção humana.

É exemplo do primeiro caso inúmeras impossibilidades relatadas pela poesia, seja ela profana ou sagrada. Ovídio conta-nos de pessoas ou deuses que, em determinadas situações, se vêem quase obrigados a se transformarem em plantas ou animais. Na literatura védica a divindade pode assumir vários “aspectos” de acordo com sua vontade e necessidade de expressão. Há também casos de possibilidade, como por exemplo o sujeito que se exercita para ter seu corpo musculosamente avolumado, ou o outro que faz dieta etc. O ser existente é o mesmo, mas aspectos de sua nova forma contribuem para uma diferenciação efetiva de suas diferentes situações no tempo.

O segundo caso, o mais comum, trata de inúmeras possibilidades. São as mais evidentes as situações de violência transitiva, seja ela acordada ou não. Tanto uma operação plástica estética como uma amputação de um membro são metamorfoses induzidas por um outro ser. Também são exemplos, um pouco mais controversos do ponto de vista do empirismo, as modelagens naturais, ou seja, uma escarpa modelada pelo vento ou uma pedra alisada pela ação da água.

Finalmente, o terceiro caso é o que mais se alonga no tempo. O homem não tem capacidade de vê-lo ou senti-lo, pois sua ação muitas vezes passa a de uma geração de seres humanos. Esses acontecimentos são o principal foco de estudo da História. Não se entenda por essa palavra apenas a História dialética, mas qualquer apreensão inteligível humana de metamorfoses em uma tentativa de ordenação ou explicação. Basicamente o fenômeno religioso é o mais fundamental entre eles, na medida em que é o esforço humano de tomar contato com o princípio ordenador do universo e, em medida mais imediata, de sua própria existência. E como estamos tratando apenas da forma, podemos dizer de fato que o mundo muda sua forma a cada momento, perceptivelmente a qualquer um. As ciências premonitórias materialistas lidam com isso da maneira mais baixa, ora as Ciências Sociais prendem determinadas sociedades em padrões lógicos que dialogam com seu passado, ora o sujeito no consultório do psiquiatra é levado a mudar-se internamente sob influência química que, se não altera sua forma palpável, altera sim sua forma estrutural e o transforma em outra espécie numa análise mais rígida aristotélica. Aliás, é digno de nota que todo materialista não reconhece essa possibilidade de metamorfose, ainda que ninguém escape de evidências claras dela, coisa que um dia pretendo demonstrar. Para eles a segunda hipótese sempre explica tudo, variando apenas a capacidade sensorial do ser humano em poder apreendê-las.

O objeto deste blog é uma mistura fina e gentil entre o primeiro e o terceiro casos, em que procuro mostrar tanto metamorfoses minhas próprias, de acordo com meu estado de espírito, como metamorfoses que eu, poeticamente, vejo e imprimo em outras pessoas, como se elas precisassem delas para se expressar de fato em toda sua capacidade e, um terceiro tipo de metamorfose, a do significado da própria metamorfose.

Em suma, este blog busca mostrar o que há de imutável em todas as inevitáveis metamorfoses. Portanto, este blog não é sobre metamorfoses.

domingo, setembro 04, 2005

Nandi

Sem mais amarras, a sair por aí, a qualquer parte. Solto. Apenas sente o cheiro da manhã no divino pasto e olha para a vastidão incontinente. Percebe um dia, o último que, por erro incalculável da providência se lhe escapou. Tenta acordar para sempre, para tudo, porque hoje é para sempre uma eternidade, o resto de seus dias.
Um só dia de liberdade irrestrita, quisera ter planejado tudo isso. Um dia perfeito em que faria tudo e tudo se faria de acordo com seu último e único desejo. Mordiscou a fresca erva especialmente estada com o orvalho das auroras da primavera e só então percebeu aquela árvore distante, que sempre estivera lá, apenas desapercebida pelas outras preocupações. Uma certa culpa o tomou por nunca tê-la visto, nunca ter admirado e respeitado sua imponente existência estática, no meio do campo aberto. Hoje sim, por meio das responsabilidades iria visitá-la. Ao se aproximar percebeu que ela era bem maior do que poderia imaginar e que, portanto, estava muito mais distante do que parecia. Sua frondosa copa estava imóvel, ali não havia vento, mas ele podia sentir o cheiro dos brotos e das flores. Ciscou o chão, deixou sua marca, para que ela lembrasse que ele esteve ali naquele dia e que, se possível, passaria mais tempo ao lado dela. Ela que era a imutabilidade vertical naquele campo infindo, ela que seria a única testemunha real do amanhã que deixa de ser depois-de-amanhã. A virilidade de uma árvore, heróica, nos escombros do nada que ninguém pode imaginar mas que, novamente, por um descuido impensável da providência, cruzou-lhe a mente naquela hora matutina.
O céu se dispôs, elegante, em sua partida: algumas nuvens e o sol, amigo e inimigo das peçonhas que o assolavam. Mas em nada disso pensou quando atravessou o caminho que levava até a estrada, com um só propósito: visitar a cerca que uma vez o aprisionou. Agora velha, apodrecida, colorida de fungos e dejetos humanos, depósito dos tempos em que a morte soberana investiu sem sucesso sobre a vida. O pau em pé e as vigas, suas pernas fraquejaram ao pensar que aquilo tudo era ilusão de quem os mantinha, do lado de cá da estrada. Agora estava livre e não sentia qualquer vontade de atravessá-la. Não era resignação, nunca ninguém entendeu que limites e fronteiras tinham outra significação para ele. E estar livre era estar, antes de mais nada, capaz de fazer o que bem sabia, sofrer do modo que lhe coubesse, comer a erva-daninha para que ela tenha frutos, enfrentar as moléstias das raízes e reverenciar o desconhecido com uma atroz dedicação.
Cansado, seguiu. Sentiu na boca um gosto de sangue. Pensou que a dor não era tão importante quanto a sua importância no mundo. Hoje era dia de festa e ele o prato principal. Métodos humanos.
Mas por nova obra da providência, ninguém apreciou a iguaria. Tinha o sabor ácido das carnes podres, muito apreciada pelos povos primitivos.