domingo, setembro 04, 2005

Nandi

Sem mais amarras, a sair por aí, a qualquer parte. Solto. Apenas sente o cheiro da manhã no divino pasto e olha para a vastidão incontinente. Percebe um dia, o último que, por erro incalculável da providência se lhe escapou. Tenta acordar para sempre, para tudo, porque hoje é para sempre uma eternidade, o resto de seus dias.
Um só dia de liberdade irrestrita, quisera ter planejado tudo isso. Um dia perfeito em que faria tudo e tudo se faria de acordo com seu último e único desejo. Mordiscou a fresca erva especialmente estada com o orvalho das auroras da primavera e só então percebeu aquela árvore distante, que sempre estivera lá, apenas desapercebida pelas outras preocupações. Uma certa culpa o tomou por nunca tê-la visto, nunca ter admirado e respeitado sua imponente existência estática, no meio do campo aberto. Hoje sim, por meio das responsabilidades iria visitá-la. Ao se aproximar percebeu que ela era bem maior do que poderia imaginar e que, portanto, estava muito mais distante do que parecia. Sua frondosa copa estava imóvel, ali não havia vento, mas ele podia sentir o cheiro dos brotos e das flores. Ciscou o chão, deixou sua marca, para que ela lembrasse que ele esteve ali naquele dia e que, se possível, passaria mais tempo ao lado dela. Ela que era a imutabilidade vertical naquele campo infindo, ela que seria a única testemunha real do amanhã que deixa de ser depois-de-amanhã. A virilidade de uma árvore, heróica, nos escombros do nada que ninguém pode imaginar mas que, novamente, por um descuido impensável da providência, cruzou-lhe a mente naquela hora matutina.
O céu se dispôs, elegante, em sua partida: algumas nuvens e o sol, amigo e inimigo das peçonhas que o assolavam. Mas em nada disso pensou quando atravessou o caminho que levava até a estrada, com um só propósito: visitar a cerca que uma vez o aprisionou. Agora velha, apodrecida, colorida de fungos e dejetos humanos, depósito dos tempos em que a morte soberana investiu sem sucesso sobre a vida. O pau em pé e as vigas, suas pernas fraquejaram ao pensar que aquilo tudo era ilusão de quem os mantinha, do lado de cá da estrada. Agora estava livre e não sentia qualquer vontade de atravessá-la. Não era resignação, nunca ninguém entendeu que limites e fronteiras tinham outra significação para ele. E estar livre era estar, antes de mais nada, capaz de fazer o que bem sabia, sofrer do modo que lhe coubesse, comer a erva-daninha para que ela tenha frutos, enfrentar as moléstias das raízes e reverenciar o desconhecido com uma atroz dedicação.
Cansado, seguiu. Sentiu na boca um gosto de sangue. Pensou que a dor não era tão importante quanto a sua importância no mundo. Hoje era dia de festa e ele o prato principal. Métodos humanos.
Mas por nova obra da providência, ninguém apreciou a iguaria. Tinha o sabor ácido das carnes podres, muito apreciada pelos povos primitivos.