quarta-feira, dezembro 10, 2008

A flor do abacate

Quando eu era criança, o mundo inteiro estava a meu alcance. As brincadeiras duravam dias, as histórias não se limitavam pelo espaço, apenas a imaginação governava; e a imaginação, para um garoto que passava as tardes no quintal de sua casa, era tão grande quanto o imensurável universo dos adultos.
A cidade, como outras na fronteira entre os estados de São Paulo e Minas Gerais, estava incrustada entre as montanhas, tinha sido fundada como refúgio aos desbravadores, que ali paravam para usar a água do rio que a corta. Na época da minha infância, havia poucas habitações, e a nossa casa ficava num dos morros. A vista era bonita, tínhamos o privilégio de ver a cidade e, no morro ao lado, o Cristo no topo, pairando sobre a cidade e seus habitantes.
Minhas brincadeiras se davam à sombra de um frondoso abacateiro, cujas folhas longas, espessas e escuras proviam um perfeito abrigo para o sol da tarde, abrigo que se transformava em palco de incontáveis batalhas, fortaleza dos meus soldadinhos de plástico, campo inexplorado de uma guerra sem motivos e sem baixas. Quando me cansava a fantasia, era eu mesmo que me tornava o aventureiro a colocar a bandeira inédita do progresso em galhos cada vez mais altos e delgados. Havia uma simples e misteriosa simbiose entre nós. O topo do mundo, como eu via, era o topo do abacateiro, e cada veio de seus troncos, cada folha que nascia, ainda clara, o perfume da seiva, cada formiga ou lagarta que me acompanhava naqueles dias, tinha o mesmo pensamento que o meu, ou talvez nem fosse pensamento, apenas a constatação de que éramos um só, silenciosos nas tardes do interior.
No entanto, à medida em que eu crescia, o abacateiro ficava menor, bem como a imaginação, as escaladas e os detalhes, que meus sentidos teimavam em desperceber. Naturalmente, eu não dava muita atenção àquilo. Meu pai, por sua vez, investia na casa, construiu alguns cômodos, cimentou a entrada, ergueu uma cerca no terreno ao lado e aumentou a grade da varanda que dava para a rua. Cercado por um canteiro, imponente e caprichosamente ignorante de tudo que se passava a seu redor, o abacateiro continuava a florescer. Ele tinha sido plantado porque eu e meu pai adorávamos abacate com leite de manhã. No entanto, já outros gostos se desenvolviam. Agora, o café industrializado, o leite em caixa e o suco concentrado tinham prevalência. Não demorou muito para que os abacates fossem esquecidos. Como já ninguém aproveitava sua sombra, nenhuma rede era pendurada no seu tronco e a seu redor proliferava um ambiente úmido e insalubre, claramente visível nos ladrilhos brancos do novo quintal, também não demorou para que viessem à tona as folhas secas que entupiam os escoadouros, as formigas vermelhas que ameaçavam a horta, e, principalmente, a obstrução da vista de parte da cidade pela folhagem da árvore.
A decisão tinha sido tomada. Não se pensou muito a respeito. Eu mesmo só fiquei sabendo quando o vizinho já estava lá, preparando a motosserra. Era uma manhã de outono e confesso ter sentido uma ponta de tristeza, nada além. Naquele dia, eu só pensava na prova que faria em instantes (não podia me esquecer de onde se encontravam as carnaúbas no mapa colorido do livro de geografia). Quando voltei para casa, o abacateiro não estava mais lá, apenas um toco e uns galhos amontoados junto à cerca de trás da casa. Ainda que uma lágrima vacilasse dentro de mim, retive-a, confiava em meu pai, ele devia ter feito aquilo por uma boa causa. De fato, encontrei-o parado na janela da sacada, olhando para a cidade. Disse-me: "Como cresceu isso tudo... Você se lembra de como era o morro do Cristo antes? Quase nenhuma casa, só o mato e a estradinha." Eu não disse nada. Contemplei a cidade e vi o rio, canalizado, vi o outro morro, o da antena, desmatado, quase estéril, não fosse uma rala vegetação e alguns bois pastando, vi o colorido desenfreado das habitações no centro da cidade, vi um terreno baldio com placas, umas carroças abandonadas e, ao lado, um menino maltrapilho arremessando um pião. Como já era mocinho, fui para trás da casa derrubar a lágrima que agora mais do que se justificava. Então era aquele o espetáculo que o abacateiro me impedia de ver. Não sabia se devia estar agradecido a ele por conhecer a verdade, mas minha covardia me corroía por ter acreditado que a vista larga de desconhecidos hostis era melhor do que a presença amiga e segura de um cúmplice da minha infância. Ali estavam, amontoadas no fundo da casa, a pureza dos meus sonhos, a ilusão de tempos melhores, as saudades de uma felicidade plena.
Eu sobrevivi. Afinal, ainda existem muitas outras árvores por aí. Aquele abacateiro me forneceu um universo na imaginação, ao mesmo tempo em que me protegia da face austera deste mundo, da mesma maneira simples e calada como me protegia do sol. A verdade revelada, por sua vez, me fez crescer e amadurecer. De certo modo, hoje o que sou é fruto de uma flor de abacate.