sábado, fevereiro 04, 2012

São Bento

Leila é a amante que finge um orgasmo e a prostituta que não finge.
Leila é a mãe que mata o filho e a viúva em luto por toda a vida.
Leila é a freira que não encontra Deus e a pobre que dá tudo que tem aos miseráveis.
No céu, há Leila clamando por perdão. No inferno, há Leila ardendo por ofensa ao Espírito Santo.

A real, talvez apagada

Existe uma Leila que está somente em meus olhos, bela, suave e veemente. Aquele que puder verá, contanto seja pobre mortal, um relance de sua verdadeira e efetiva morada.

A Leila real, talvez apagada pela opacidade de sua pele. O cabelo liso e sedoso, morto no pescoço, porque não devorou ela inteira e tinha vontade. Leila é apagada porque viva. Vive porque mata. Opaca porque translúcida nos olhos, que não existem senão pela mão que extermina.

O andar e a altura

Leila das incríveis façanhas. Leila dos andares e das alturas, obstetra dos desejos fugidios, sempre vigiando os horizontes das verticais. Leila é precisa nas artes da calma. Tem em seu ventre macio e tépido segredo, o éter transmutado do sagrado. As nuvens penteiam Leila e ela chora, de alegria ou tristeza, para que possa chover. A Leila, altiva senhora do clima e das misérias.

Leila anda e Leila sobe. Sob seus pés espinhos para que eu possa ser o mundo. Criei a gravidade somente para sentir o peso aniquilador da planta dos pés de Leila. Nossa separação eterna assim, Leila a deitar e a ouvir meu coração batendo lentamente para poder dormir e, quem sabe, sonhar.

A anti-Leila

Leila está possuída e quer ser normal. Ela decai. Ela verte sua perfeição a cada expiração, pus na sua tosse, repleta dos nossos pestibundos dias. Vai, e busca a imperfeição, sendo Leila, a perfeita imperfeição. Eu decaio duas vezes, no retângulo perfumado e glorioso, o oceano de sua imperfeição em que nado.

Leve Leila pelo cetim, sonhando ser a princesa das trevas, onde me perdia eu, sem ser o tenebroso mas cego. No preclaro engodo, alma minha e de Leila, executadas, seriam nossas identidades neutralizadas. Onde estaremos quando o sol se puser?

Ó príncipe, dá-me o dom de ter Leila em mim, por mim, mas sem mim. Os olhos langorosamente bondosos, o sorriso propedeuta e o corpo esvaído de si para sempre hão de ir em teu encontro. Que eu me dedique a ti e encontre a mim mesmo, feito Leila.

Heresia e ignorância

Leila é a memória dos meus sonhos não-realizados, esquecidos, esfomeados por sobrevivência, por rugas de saber, por soberba da emergência dos dias, que não paravam de nascer na aurora surda. Imenso conflito entre o que eu era e sou e o que devo ser, Leila me lembra de tudo, transforma em presente, tudo em só, o agora.

A sombra de Leila é Leila, como onde eu possa deitar, ao abrigo de tudo, porque viver cansa, demais. Não há descanso, porém, na vida que não é. Leila e o frenético pulsar de seus passos, portanto, ferroadas, um cancro lento e sutil, quieto, a retomar a morte.

Leila fosse a mãe de Deus. Em seu olhar humaníssimo as místicas, as fervorosas, as guerreiras, as santas, as corajosas, as mães, as filhas, as irmãs, as piedosas, como nas escrituras. Leila é todo um convento de habilidades indispensáveis à mulher. À disposição.

A questão

Leila existe. Leila é uma função, uma palavra sem sentido, encobrindo toda a superfície do ser. Ela é o anjo da morte, o fim de todos os duplos, de todas as malícias, de todos os subentendidos. Leila está lá, por sua vida, pela minha, sem desconfiar disso. É em Leila que mora a única verdade, o único sabor da existência. Pode ocorrer de Leila ter compaixão, piedade de mim e me deixar ver que Leila não é Leila, e que até mesmo Leila é um simulacro de Leila.

Mas ela existe, mesmo que para além de si mesma. É provável que Leila esteja escrevendo uma vida nas estrelas, redefinindo o cosmo, sobrepondo História e escatologia apenas com a exuberância de sua existência.