sábado, maio 03, 2008

Rosa

Sangravam as bordas do céu, findando a tarde. O que se via mesmo era verão, a lenta e silenciosa marcha das raízes encobrindo os pastos e as pegadas que procurava. Resoluto aspecto, por veredas inusitadas, iam as pregas de suor, cortina do dia. No fundo, era a paz, a partida do coração sublime em volta da paz prometida, deliberada. À barba cerrada entranhava-se o desejo de fiéis e sucessores, os seus. A tortuosa maneira de seus dias na palma da mão escrita, levada à vera linha, muito concebida e estruturada. Tinha a prova e a refutação aos argumentos, as sínteses elevadas e as conclusões fundamentadas; vislumbrara, numa tarde parecida com essa, o caminho.
Abaixo disso, as pegadas. Sem nenhum propósito conhecido, a besta existia, mesmo antes dele, e se dizia eterna. Não se dizia, se fixava.
Os bons dias rareavam, as árvores negavam sombra. Os longos anos incontados agora se margeavam em excesso e falta. No mapa da cidade estava a razão, as léguas terminadas, os limites derrubados. Era necessário um fim, à fera insaciável, sumidouro, antes que um outro viesse e a derrotasse.
O homem da cidade vinha, vinha e não temia. Antes, desprezara os louros, agora deles fazia esteira. O bronze das distantes ilhas, as mágicas dos horizontes, nada mais o apetecia. Apenas queria e amava, como se amor fosse possível, naquela época.
Caçadores frugais já a avistaram, fugidia, agourenta, lombos de hiena, guinchos, pesadas penas e o coração apedrejado pelo medo, cerco sem beira. Sempre perto da oliveira, a que demarca a terra, partilha dos inocentes, verdades consagradas dos pais dos homens. O sol ali se punha, luz oblíqua dando pavoroso aspecto à alameda onde, diziam, numa baixa, deixavam-se os óbolos do oculto fim da estrada.
Aproximando-se o homem da cidade, embaçaram-se os olhos, o suor encrespou-se e o peso dos passos tornou-se surdo. Entre as árvores, os raios escapados do sol dardejavam sua pele de lilases. Ouviu um terrível som e avistou a considerável distância, entre os arbustos, leão imenso, sentado e ofegante. A gigantesca cabeça, juba de terra de toda parte, estava ligeiramente inclinada à esquerda, mesmo tendo avistado o homem, desdenhosa.
Soberbo sorriso, ele hesitou em acreditar fosse a besta, temida por sua geração e pelo menos cinco anteriores. Queria alertá-la de que estava ali e que não era como os outros, fugidos ou capturados, veio para estar e decidir o futuro do impasse.
Preparou a arma, concluiu a mira e alvejou, acertando o flanco do animal, que não se mexeu. Lançou mais uma e outra vez e o leão, então, calmamente, virou a cabeça e fixou os olhos nele. Nesse instante, sem que percebesse, estava ao lado da fera, vultosíssima. Sua mente sabia de constelações e de relevos, de medidas e simetrias, de conceitos e verdades, mas nada lhe explicava como se aproximou sem perceber da fera. Concluiu, então, irrefutavelmente, que o leão é que havia aumentado de tamanho.
Notou que o animal tinha marcas de sangue, não de ferimentos de sua arma, mas de suas vítimas, e que sua pele era túrgida como os penedos limosos.
Então, saiu da besta uma voz – embora a boca não se mexesse:
– Sei quem és, e para que vieste.
Apavorado, o homem percebeu que sua própria boca, sim, estava aberta, mas que não conseguia pronunciar palavra. Continuou o leão, quieto:
– Estou velho e cansado. Teu mundo é triste como uma lembrança futura que tive há pouco. Toma tua espada e perfura meu peito, o que deves fazer.
Ele paralisado. A fera, então, abocanhou seu braço esquerdo, congelando-o e esmigalhando-o, divulgando morte ao resto de seu corpo. Sem que pensasse, desembainhou sua faca e a meteu no ventre do leão que se abriu e engoliu seu outro braço. O homem da cidade não se recordava de quanto tempo durou isso, bem como, em geral, pouco restou de qualquer memória.
Seu braço foi expelido e alongada a lâmina da faca, que passou a verter sangue, sem parar, de um perfume que nunca antes sentira. Tirou o outro braço, totalmente recuperado, da boca do leão e tentou segurar as lágrimas, a que parassem de cair pelo chão, via os caminhos do suor. Chorou, chorou até se cansar. Deitou-se apoiado ao corpo da fera e suas lágrimas misturaram-se ao sangue que jorrava. Foi então que na lâmina brotaram as rosas vermelhas, e o homem dormiu e sonhou, pela primeira vez.