sexta-feira, outubro 20, 2006

Pêssego

Estou seco.
E por isso, só por isso, sofro as penas do inferno.
Estou cego.
E por isso, só por isso, agarrei-me tão fortemente às profundezas do lago.
Estou cepo.
E por isso, só por isso, expirou-me a boca do leão.
Estou pego.
E por isso, só por isso, o tártaro me consome.
Virá o fogo purificador de duas faces, sobre carneiro, a que tudo reinicie.
A partir dos ossos.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Ossos molhados

Àquela hora da noite, neste sublime mundo, pensei estar sozinho e quase dormia, enquanto a chuva percutia o meu crânio.
Meus olhos molhados.
E, no entanto, lá estava, na periferia do alcance, uma estranha quadrúpede figura, vultosa, contra a tênue luz das últimas vidas boêmias. Um pouco contra a vontade e a recomendação dos doutores, firmei a consciência e deixei que o frio me retomasse para conseguir definir o quadro. Um cão, à porta, olhando para os miseráveis que lá restavam, tentando sorver a última transparência da noite. Olhava, com a típica inabalável esperança de sua raça, ainda que dobrasse uma das patas, irreparavelmente machucada. Era velho, alguns de seus dentes já haviam virado pedra e eu quase podia sentir o cheiro dos inúmeros anos nos seus pelos chovidos.
Atento à cena, sentia meu coração cada vez mais apertado com a patética perseverança canina, ainda que, vez ou outra, seu olhar se desviasse, como querendo cinicamente despistar as evidências. Certo, era um animal mentalmente débil e enquanto eu formulava essas questões um dos comensais, o mais bem apessoado, lançou-lhe um grande pedaço de carne, que ele tentou abocanhar ainda no ar mas, talvez devido ao tamanho do petisco, a sua perdida destreza ou ainda à refração das gotas da chuva, acertou-lhe em cheio o dorso e foi parar na corredeira da sarjeta. O bicho, manquetolando, salvou-a por pouco das perdições do esgoto e foi para o outro lado da rua, cuidadoso com o trânsito, saborear sua recompensa. Mas o esforço havia terminado com ele. Acabou adormecendo, com a cabeça apoiada na carne.
Levantei-me e fui para junto dele. Precisava, naquele momento, sentir que alguém no mundo sonhava comigo, dormindo em travesseiro mais macio do que os próprios ossos.

terça-feira, outubro 03, 2006

osso

Nada que eu pudesse fazer.
Foi como a encontrei, deitada, olhos fechados, como que a ouvir o que a terra tinha a lhe dizer. Lembrei-me da gentileza com que o arado faz caminho na terra úmida do começo da primavera, do natural e certeiro mergulho dos pelicanos em busca do peixe mais tenro e do borbulhar silencioso das nascentes: a seta abria esteio em meu peito, a lâmina quente, já antiga mas nunca esquecida. Abaixei-me para recolhê-la, temendo que qualquer movimento meu, mesmo uma respiração errada ou descadenciada, pusesse tudo a perder. Senti entre meus dedos aquele fio de vida, a excelência da criação dos tecidos, como uma tênue exibição do infinito espaço naquela translúcida pele. Então pude ver suas cores, as que sempre escondeu, enrubescida; cores naturais, como as que sempre se espera, não fosse a pressa de não lhes dar atenção. Estava ali, inerme, e como é comum nessas horas, meus sentidos se multiplicaram, pude ver todos os esquadros e curvas, as elevações e declives, a maciez e a tepidez, o cheiro da última ceia e sob qual abóbada se deu: tudo que fazia dela ela, nada mais.
Como eu gostaria de encontrá-la sempre viva, sempre externa dentro de mim. Como só então me dei conta de que era a primeira vez que a sentia assim. Não estava morta, e suas penas verdes, recém-nascidas, eram miseramente um símbolo para quem sempre os procurou. Hesitei entre admirá-la naquele momento ou fechar os olhos e imaginá-la, sem a imaginação. Gostaria mesmo de não sentir mais minhas mãos para que, anti-demiurgicamente, a criatura criasse a ferramenta do criador.
No momento em que adivinhava os elementos que a compunham, que entrava em comunhão com cada vereda de seu ser, que previa os movimentos involuntários de seu corpo, ela entreabriu os olhos e minhas mãos, sempre frias, começaram a se esquentar. Senti uma leve vertigem quando percebi que seria descoberto, que seu olhar vinha em minha direção. Ao perder meus sentidos pelo escoado de um sumidouro, o negro dos olhos dela fez com que o sol nascesse dentro dos meus e eu só pudesse ouvir o pulsar da terra. Já não havia nada a fazer.

Apenas senti um conforto por todo o corpo, como se alguém me segurasse.