quinta-feira, outubro 19, 2006

Ossos molhados

Àquela hora da noite, neste sublime mundo, pensei estar sozinho e quase dormia, enquanto a chuva percutia o meu crânio.
Meus olhos molhados.
E, no entanto, lá estava, na periferia do alcance, uma estranha quadrúpede figura, vultosa, contra a tênue luz das últimas vidas boêmias. Um pouco contra a vontade e a recomendação dos doutores, firmei a consciência e deixei que o frio me retomasse para conseguir definir o quadro. Um cão, à porta, olhando para os miseráveis que lá restavam, tentando sorver a última transparência da noite. Olhava, com a típica inabalável esperança de sua raça, ainda que dobrasse uma das patas, irreparavelmente machucada. Era velho, alguns de seus dentes já haviam virado pedra e eu quase podia sentir o cheiro dos inúmeros anos nos seus pelos chovidos.
Atento à cena, sentia meu coração cada vez mais apertado com a patética perseverança canina, ainda que, vez ou outra, seu olhar se desviasse, como querendo cinicamente despistar as evidências. Certo, era um animal mentalmente débil e enquanto eu formulava essas questões um dos comensais, o mais bem apessoado, lançou-lhe um grande pedaço de carne, que ele tentou abocanhar ainda no ar mas, talvez devido ao tamanho do petisco, a sua perdida destreza ou ainda à refração das gotas da chuva, acertou-lhe em cheio o dorso e foi parar na corredeira da sarjeta. O bicho, manquetolando, salvou-a por pouco das perdições do esgoto e foi para o outro lado da rua, cuidadoso com o trânsito, saborear sua recompensa. Mas o esforço havia terminado com ele. Acabou adormecendo, com a cabeça apoiada na carne.
Levantei-me e fui para junto dele. Precisava, naquele momento, sentir que alguém no mundo sonhava comigo, dormindo em travesseiro mais macio do que os próprios ossos.

1 Comments:

Blogger Anvil said...

Clerks 2 na Mostra, sexta, 0h, no Unibanco Arteplex 4.

20/10/06 00:02  

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