Ossos molhados
Àquela hora da noite, neste sublime mundo, pensei estar sozinho e quase dormia, enquanto a chuva percutia o meu crânio.
Meus olhos molhados.
E, no entanto, lá estava, na periferia do alcance, uma estranha quadrúpede figura, vultosa, contra a tênue luz das últimas vidas boêmias. Um pouco contra a vontade e a recomendação dos doutores, firmei a consciência e deixei que o frio me retomasse para conseguir definir o quadro. Um cão, à porta, olhando para os miseráveis que lá restavam, tentando sorver a última transparência da noite. Olhava, com a típica inabalável esperança de sua raça, ainda que dobrasse uma das patas, irreparavelmente machucada. Era velho, alguns de seus dentes já haviam virado pedra e eu quase podia sentir o cheiro dos inúmeros anos nos seus pelos chovidos.
Atento à cena, sentia meu coração cada vez mais apertado com a patética perseverança canina, ainda que, vez ou outra, seu olhar se desviasse, como querendo cinicamente despistar as evidências. Certo, era um animal mentalmente débil e enquanto eu formulava essas questões um dos comensais, o mais bem apessoado, lançou-lhe um grande pedaço de carne, que ele tentou abocanhar ainda no ar mas, talvez devido ao tamanho do petisco, a sua perdida destreza ou ainda à refração das gotas da chuva, acertou-lhe em cheio o dorso e foi parar na corredeira da sarjeta. O bicho, manquetolando, salvou-a por pouco das perdições do esgoto e foi para o outro lado da rua, cuidadoso com o trânsito, saborear sua recompensa. Mas o esforço havia terminado com ele. Acabou adormecendo, com a cabeça apoiada na carne.
Levantei-me e fui para junto dele. Precisava, naquele momento, sentir que alguém no mundo sonhava comigo, dormindo em travesseiro mais macio do que os próprios ossos.
Meus olhos molhados.
E, no entanto, lá estava, na periferia do alcance, uma estranha quadrúpede figura, vultosa, contra a tênue luz das últimas vidas boêmias. Um pouco contra a vontade e a recomendação dos doutores, firmei a consciência e deixei que o frio me retomasse para conseguir definir o quadro. Um cão, à porta, olhando para os miseráveis que lá restavam, tentando sorver a última transparência da noite. Olhava, com a típica inabalável esperança de sua raça, ainda que dobrasse uma das patas, irreparavelmente machucada. Era velho, alguns de seus dentes já haviam virado pedra e eu quase podia sentir o cheiro dos inúmeros anos nos seus pelos chovidos.
Atento à cena, sentia meu coração cada vez mais apertado com a patética perseverança canina, ainda que, vez ou outra, seu olhar se desviasse, como querendo cinicamente despistar as evidências. Certo, era um animal mentalmente débil e enquanto eu formulava essas questões um dos comensais, o mais bem apessoado, lançou-lhe um grande pedaço de carne, que ele tentou abocanhar ainda no ar mas, talvez devido ao tamanho do petisco, a sua perdida destreza ou ainda à refração das gotas da chuva, acertou-lhe em cheio o dorso e foi parar na corredeira da sarjeta. O bicho, manquetolando, salvou-a por pouco das perdições do esgoto e foi para o outro lado da rua, cuidadoso com o trânsito, saborear sua recompensa. Mas o esforço havia terminado com ele. Acabou adormecendo, com a cabeça apoiada na carne.
Levantei-me e fui para junto dele. Precisava, naquele momento, sentir que alguém no mundo sonhava comigo, dormindo em travesseiro mais macio do que os próprios ossos.
1 Comments:
Clerks 2 na Mostra, sexta, 0h, no Unibanco Arteplex 4.
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