sexta-feira, maio 05, 2006

Malpighi

No último dia, a lembrança.
O cheiro forte o incomodava, ao mesmo tempo que lhe dava, providencialmente, uma justa sensação de placidez. A visão que se turvava era surpreendente, um claro magnífico fazia seu corpo pulsar, como um derradeiro instinto a buscar refúgio dos perigos da vida. Malogrado. Parado é que recebia a unção, forte carga de morte, moléculas complexas, sintéticas, simpatizando com suas células, irremediavelmente espalhadas por todo o corpo que respira.
Era possível, naquela hora, que perdesse completamente o controle das coisas, mas não, apenas deitou-se e deixou que a dor o tomasse, como imperativo de vida tão fútil, desregrada, desmerecedora de qualquer simpatia. Assim era o universo, só o que conhecera. Assim as milhares de microscopias que de nada lhe serviam ou interessavam, eram sua subsistência. E também, a dor não rivalizava com o frio, o intenso frio de um corpo que já se tornava incapaz de absorver qualquer coisa. Mexer as pernas, gastar tudo que tinha, nem era sua escolha, nasceu antes da concepção.
Mas agora precisava delas, a se aquecer por aquilo, aquele único aquilo que valia a pena ter antes de virar lixo. Sentiu que o esforço era tanto que suas vísceras tinham sido expelidas e já nem dor podia mais sentir. Qualquer coisa parecida consigo mesmo desaparecera, e no entanto, ele continuava ali, só se sabendo vivo pela brisa vinda do frenético balançar de suas pernas.
Daquilo valia a pena lembrar-se. Dela, aquela lembrança.
E agora, só tem a lembrança da lembrança, um maldito cheiro forte, que o incomoda.