domingo, novembro 11, 2007

Ahimsa

As fontes vizinhas quase secam e as noites se alongam. Esqueci-me de contar os dias. Perdi a referida hora pela taça que deixou escapar a areia. Noites e noites desde que, no horizonte, o sol se escondeu. Quanta surpresa esse mundo reserva aos tolos. Um eclipse margeou minhas certezas de um vermelho celeste e eu recuperei algo de esperança, a tua esperança.
Passa o rio velho, investindo no resto de galho que teima em não se desarraigar. Perdi a conta de quantos ovos depositamos no lodo, à base daquela árvore. Tu já ouviste dizer que alguns deles esperam vingar, não já? É de se rir. Mas não posso.
Penso em ti e paro de respirar. Há, sim, verdade na idéia de transbordar o tempo através de uma relação íntima e essencial, onde as trocas se dêem pela honestidade da matéria, pura e simples. Envolver uma centelha de energia e participar do movimento o mais tímido possível é como arremedar o único sentido do universo. Não, pensar não é tão simples, e dura muito, tu sabes. Tenho apenas a vantagem do tamanho diminuto, da insignificância, e essa certeza de que tu podes ser, para além de mim, algo nem completamente diverso nem completamente igual.
Ensaio um choro quando vejo que entendes tudo como uma experiência material, pura e simples. Mas não tenho olhos para ver, nem para chorar. Minha estupidez é natural, mas única, irremediável. Acredito ser possível, um dia, que saibas não ser eu um estranho capricho da natureza. Creio mesmo que possas compreender que não existe natureza, apenas isso: o movimento. Um movimento disforme, senhor, inconsciente e inconseqüente, que teimas chamar de vontade.
Quando tento aqui comunicar-me contigo, apelo para tua memória, para tua temperança, mas, acima de tudo, para tua sede de saber. Nada é possível de ser escrito. Absolutamente. O néctar secou as fontes vizinhas, como o orvalho feriu nossas cicatrizes. A praça onde hoje pus toda minha vida é a mesma praça de qualquer parte do mundo. Um quadrado circunscrito onde o ritual da simplificação amaina toda mesquinharia e toda excelência.
A mim mesmo, só a memória basta. As cômodas cócegas de ter suas palavras, as tuas. Edificamos nossa existência através da santa dedicação ao alimento, usamo-nos demais a nós mesmos a ponto de perecer e, então, tornamo-nos outra coisa, transfigurados nesse lícito passar de vivências. Nada mais é concebido senão em erro; nosso tamanho, nossa capacidade e mesmo nossa vontade. O que nos diferencia de nós mesmos é o estranhamento e a dependência. Pois, tu mesmo, senhor, uma vez, disseste-me que para poder enxergar tudo era necessário ter compaixão. Às vezes, tu me surpreendias.
Já não me alimento de mel. Tenho, agora, as pétalas. Pus toda minha vida num botão de flor, sem perfume.
Vendo na esquina o vento leste trazendo todas as justiças, padeci desses perjúrios. Invoquei minhas estadas, meus poderes, minhas juntas, minha sabedoria, e, na medida em que me lembrava, eles sumiam, com o pó de néctar que secava as fontes vizinhas. Sabes que nossa espécie é resistente, mas temi, naquele momento, por nossa extinção; apenas, o pó levou também o temor embora.
Com a noite, perdi meus sentidos, perdi minha vez. Animais covardes que somos, a noite sempre nos incomodou, muito embora nossos abrigos escuros e úmidos fossem débil prova do contrário. A paz que tanto apregoas é estado de seres superiores, a complexidade factual do rei que firmou acordo para o bem geral. Desconheço.
Pensava ter me perdido, mas encontrei este belo astrolábio. Pus toda minha vida nele. Estas linhas são coordenadas que tracei do que me sobrou. Só isso. Nada é possível de ser escrito. Apenas borrões de memória que deixo para ti, senhor, junto à taça de areia. Ou seria pó? Já não posso saber.