sexta-feira, setembro 24, 2004

fábula de esôfago

-Um velho comilão, isso sim é que tu és, disse a vaquinha, piscando os olhos, cansada do sol que sempre a irritava, na mesma hora.
-Qualoquê, dona vaquinha, mal passo a hora de comer, o dia inteiro rosnando por alguma vida lá em cima.
-Ora porcalhão, gostas mesmo é de olhar os cus de arriba, estrumeando teu pasto, tu não me enganas. Agora vens para cá, onde ninguém te quer, tem paciência...
-Juro, prometo não incomodá-la, dona vaquinha, apenas que seus dejetos são mais apetitosos, aqui tenho a brisa por entre as narinas abertas, aqui a relva acaricia meus cascos doloridos. Veja, até consigo levantar minhas orelhas!
-Não tentes me enrolar, magano, acaso pensas em não cagar tu também? Nós tampouco queremos encrenca, mas com o senhor aqui, a cheirar e comer tudo que te convém, ah, mas essa não é mesmo de se agüentar. A vida não é só merda, entendes? Ora, que digo eu...
-Dona vaquinha, sou porco, mas no final, todos morremos, viramos vianda na mesa dos cus de cima. Pensa que é fácil comer a merda dos que nos comem? Deve ser pecado até... Mas eu não tenho escolha, aliás, tenho, estou aqui no pasto e penso em dormir, como a senhora.
-Estúpido, vacas nunca morrem, só dormem, e tu com esse sorriso de dar nojo... Somos todas iguais e gozamos do direito de dormir. Somos sagradas, vivemos nos templos, temos a vida para sempre, leite eterno das estrelas. Se tua vida não fosse em meio à merda saberias um pouco disso. Agora mesmo, quando tentas te enobrecer, estás aí, cheirando, fuçando a grama em busca de coisas já digeridas. Triste geração, poupa minhas irmãs de te ver.
-Bem, devo ir, desculpe, dona vaquinha, já se avizinha a hora das calças arriadas.
-Hmm, pois já? De fato, o sol já baixa, volte sempre, porco fedido, é sempre um prazer.