terça-feira, setembro 12, 2006

Azimute

Ao longe, certo era, ou estava.
Com as possíveis medidas, ela singrava o velho mar, no começo daquele dia. Parte de sua estatura visava o convés, via popa, na fronteira dos fragores submarinos. Formavam bela escuna seus passos, e a estrada acompanhava calma e ansiosa, sua breve caminhada entre os sargaços. Meus olhos doeram, colírio ácido, estômago vazio das temporadas de pesca.
Então, seguindo a rota, avistou a clara bóia onde fizemos estadia. Sua busca, algo desesperada, era por meus tesouros, que eu os perdia naquele exato momento, delicado contravento das despedidas. Levantada a bandeira das boas-vindas, aproximou-se, negociamos a vertente da sequência, e seguiu bordo, por onde, claro, estendia-se o sol das manhãs passadas.
O sol das manhãs passadas em sua vela referiu-me o pensamento que me dera, quando de outras viagens. Reveladas eram suas idéias por o vão das madeiras curadas e onde estavam separadas da flanela. Ela tinha um hábito de buscar rapidamente, entre os instrumentos de precisão, o corte das estrelas, o rumo norte, a cardealidade dos dias comuns no alto-mar. A precisão, sim, dos seus olhos, que quando a quando olhavam para o nada, semelhança do interior, vero engano.
Divisada, entre as desesperadas lacunas das alçadas, entre as maresias e as cracas do vau ligeiro do estibordo, nu, como sempre, sem ser invadido pela salinidade corrosiva dos estuários.
Estremeci como uma pequena onda, cansada de ser levada mar afora e que de repente se crê consciente quando inexistente. Como um ligeiro encalhe, tentei me precaver da infinitude do invisível, abaixo-superfície, calado. Amedrontei-me frente à possível escuridão das fossas que nela estavam, em que batia o coração das espécies nunca encontradas.
Mas era um borbulhar incômodo na quilha, que a passagem dela causava à embarcação, fazendo com que eu me lembrasse das épocas em que navegávamos alegres entre as piores condições. Tínhamos tudo no peito, hoje, tudo na memória.

É possível que tenhamos honrado nosso futuro, selado nossas vidas no mar sem fim, glacial, silencioso, em que sempre sonhamos, aterrorizados, estar. Sim, é possível. Como faremos, no dia em que o vento for favorável e reconhecermos que o caminho é sempre de volta, porque apenas dele nos esquecemos.
Longe, longe, certo estará, ou será.
Da pluma nascerá a dor. Da dor, a voz. Da voz, o choro, o eterno dos mares. Junto ao horizonte, em pé, ela estará, prestes a provar a existência da Terra, sua qualidade esférica, nossa incapacidade de concentração no sextante. E um dia, chegada à praia, ela acolherá com sua simplicidade e calma todas nossas histórias, cansada de tanto esperar pelo fim delas. Digo, não cansada, apenas com a paciência esquecida, bocejando para o oeste, para que os companheiros tenham a sorte por rever seus familiares.
Nesta hora, perto está, onde já adeus é impossível.
A ela.