segunda-feira, junho 16, 2008

Não há nada como um bom prato, cheio
De dúvidas, promessas não-cumpridas,
E que abrigue em sua massa, bem-guarnidas,
Fatias de ansiedade, por recheio.

O tempero da verdade é um receio
De viciar com o hálito as vidas
Presentes com as voltas e as idas
Desandadas do molho-devaneio.

Vez que agora degusta e se lambuza
Com a sobremesa da inteligência
Benigno misto de medusa e musa,

Transforma-se vaidade na essência
Com delicadeza - vedada escusa -
Numa taça plena de paciência.

domingo, junho 08, 2008

Dupla

Estância rochosa imaginada, onde outono era quieto e a camada de sol pleno no escol das horas declinava, os hábitos dourados da terra e a delicadeza de eternidades, o que se buscava, amenas felicidades. O descanso não da lida, apenas do prazer de friccionar contra os penedos a preciosa vida, que a todo momento se mostrava, num dia lento como esse em que os olhos fechava e nada era pensamento, além de um partido distante e saudoso, do qual refém. Assim permanecia.
No dia, porém, houve uma visita, aquela figura ímpar no horizonte, bendita, era a esperada. Impaciente como só mesmo a impaciência das temporadas, entreabri os olhos e mantive-os assim, até que por uma prudência de caráter, pensei nos confins e novamente os fechei, como que a sorrir com os olhos em homenagem a quaisquer escolhos. Ela se aproximava, branca e clara, como em meus sonhos imaginara, vicejando em torno de si a bondade dos dias mornos e a verdade que só mesmo aquele tempo e lugar poderiam engendrar.
Seus cabelos eram vertentes do futuro, puras enchentes de minério raro. Um caro mistério ressoava em seu sorriso, mel das sementes, preciso véu de tantas premissas e primícias. Os olhos, de tão negros, eclipsaram o sol, vítima de seu segredo, esplêndido arrebol.
Desconhecia o medo, abraçamo-nos e, naquele instante, o ritmo da vida deixou de ser constante. Qual figura de outras eras, éramos quimeras de um deus humano, um certo Prometeu, um certo Jano a contemplar somente futuros, muros à nossa frente, nós, que pelos laços, inventamos o presente no espaço.
Na nossa união ainda mais rica, nasceu, de prontidão, a estrela preferida de Adão e sua prole. Na argila ainda mole, esferas foram concebidas como planetas em cada volta de sua ida. Criamos alamedas nos campos vastos, cobrimos de morada viva os furos e as feridas e, por fim, mortificamos os duros emplastos que de todas partes se ofertavam.
Ainda hoje, mesmo agora, sou castigado pela espora da memória, quando seus olhos, anteparo da história, buscavam apoio nos vértices do céu. Vejo ainda, revel, seu braço sobre o meu, ameaça de partida, na praça, sua mão de artista a segurar uma linha imprevista mas esperada, como sua branca e clara chegada.
Notificado de minha incapaz arte, escrevo esse quadro à parte de tudo. Melhor seria, eu sei, se pudesse e conseguisse ficar mudo. Melhor seria se a palavra fosse o que sou, só escudo, quase nada, a proteger essa figura pura e linda, rítmica e pausada.