terça-feira, março 27, 2012

Canção de amor

Leila, eu te amo como um cego na escuridão, um louco num sonho lúcido, a fantasia breve de um suicida, o buraco sólido de uma instalação.
Eu te amo como um arco longe da seta, o tutano sem o pulmão, a haste que apara as arestas, o soro vívido da putrefação, o ânimo das bestas feras, as vésperas de um perdão, eu te amo, Leila, de todo meu coração.
Leila, eu te amo numa morada funesta, num bosque frio e úmido, numa nova e assassina represa, na caserna do exército vencido, no plano de uma vela sempre acesa, no suspiro seco de um choro não contido. Leila, meu amor supino e inimigo.
Eu te amo, Leila, como lâmina cega de ferrugem, como estrume seco na vereda, como cheiro azedo, labareda, vestígios caiados de fuligem. Eu te amo, amor virado em munição de armário, escopeta, garrucha e mosquete, lembrete empoeirado de antiquário. Eu te amo, Leila, amor vário.
Liminarmente, há somente, em Leila, meu amor introjetado. Espécie de ciência infantil, tem em mim a presteza de um rio com a maneira de um mar em paciência. Amor de prepotência, amor servil, Leila, é meu por ti um boticário de essências, por um fio.
Leve para ti, Leila, meu amor, porque eu te amo nas listras brancas e nas pretas de uma zebra, nas gordas ancas das palmeiras de alameda, no estrepitoso vagar dos ponteiros do relógio, nos poros fechados pelos micróbios ligeiros, nos teus pés e nos seios, nos teus dentros e nos teus meios, por onde meus dedos ficam cheios, por tudo que foi e que veio, eu te amo, Leila, do útero ao primeiro asseio.
Leila, eu te amo como tua sede preenchida, como um jejum sagrado, tua vagina prurida, teu uso acostumado da medalha de São Bento, teu voto apertado, teu sono lento, teu manto molhado, teu reino denso e virulento. Eu te amo por perto, na estrada calcada no deserto, caminho de tua casa, o espaço aberto ao qual vaza o mosto do meu plexo. Eu te amo, Leila, no plano convexo, na nascente ignota das faces, leste e oeste, e das mais diversas, uma só prece.
Leila, meu amor é uma messe, um vaso de oferendas, o conteúdo completo de todas lendas, as minas perdidas, as calendas das cidades submersas, os templos de Hórus, as rotas persas, Nabucodonosor e os berberes de Líbia, Assíria, e os hotentotes, a maça de um povo contra o mote, último avanço contra pedregoso forte.
Leila, meu amor são teus olhos. Leila, meu amor são teus pés. Amar-te, Leila, é me redimir em todas as fés. Ser tua escora e teu convés, navegar por estrelas, até que fiquem paralelas, e que o tempo para sempre pare nelas, amor puro de donzela.
Leila, eu te amo.
Pelas eras.

Templo

Ter Leila por perto é ter um relógio, sem ponteiros e sem marcadores.

Paraíso

Os olhos mortos de Leila
passeiam no sol poente
secretos, suscitam ventos
e impedem a maré cheia.

Os olhos mortos de Leila
separam tendões dos ossos,
do caule sangram os vasos
a fim de adubar as veias.

Os olhos mortos de Leila
comem larvas besuntadas
de ambrosia e, do nada,
fazem nascer borboletas.

Os olhos mortos de Leila
recitam velhos ditados
fixos nos altos palatos,
verdades meias e inteiras.

Os olhos mortos de Leila
contratam legião de escravos
obedientes e avaros
para queimar a colheita.

Os olhos mortos de Leila,
sintéticos alquimistas,
viram derrota em conquista
mal envenenam as setas.

Os olhos mortos de Leila
enxergam o pus de tudo
que é grande e já foi miúdo,
o fosco que agora espelha.

Os olhos mortos de Leila
da morte não fazem caso,
mesmo não respeitam prazos
e chamam Leila de velha.

Os olhos mortos de Leila
são pedras em prata e ouro,
testamento d'outro olho
que tudo vê, sempre esfera.

Nada há que apague as velas
dos quatro cantos do catre
onde dormem, uniformes
os olhos mortos de Leila.