domingo, maio 28, 2006

Infectio

E o prurido nos olhos aumentava, conforme íamos avançando a noite, fria lança. A paciência que nos era exigida já uma vez vinda, nunca esperada, resistíamos por nosso ofício, à calada. Entre as folhagens, penetrávamos, pétalas de margaridas murchadas, a quem nos pudesse ver. Mor de continuarmos, puxávamos uns aos outros e nessa hora, sorridentes, confundia-se o que éramos, apenas poeira dos calços. Indo e indo, deixávamo-nos iludir pela margem das letras minúsculas, rugas dos troncos, ainda quentes do crepúsculo. Bordávamos, e o nosso encontro era sadio, deveras natural, à nossa despedida respondiam as falésias - só eu, outrora, me lembrava do mar e das nuvens.
Vertemos fumo, giramos roda, inflamos vela, enviamos os melhores às estreitezas e raros nos tornamos, nossa espécie. Não foi pequeno esforço, um resto de casca nos dentes, as cores das pedras destiladas, lassa água nos acompanhando e o éter, eterno presente das miniaturas, únicas amigas. Insistimos pelo envolto da encosta e encontramos: a graciosa, boa e bela.
Até ela, um rosário, doce aroma. Obstinamos em nossa pontiaguda cegueira, alargando aqui e ali nossa experiência. Sentimos. Era o momento de separarmo-nos. Para que se cumprissem as escrituras, eu então. O calor era claro do arfar de seu bojo, negra fruta. Tornei suas costas e tateando o colo senti o fremir. Nossa viagem, preconizada, era por ela e ela não ouvia. Grandes olhos cerrados, àquela época, eclipse. Entrei, delicado e respeitoso, respiração que se calava. Minas mundanas e periféricas, umbigos inúteis. Achei o baricentro e dardejei. Cáustico látego, vital mistério.
Lança, fria noite.

quinta-feira, maio 11, 2006

Mortalha

A culpa é só minha, eu sei.
Ao vê-la nua, pensei na seda e nas pérolas.

terça-feira, maio 09, 2006

Pas la peine

Cabelos de canário, cinzel para o rosto, madeira-de-lei. Olhos de arenque, mordida profunda, crocodiliana nos cílios, rés-do-chão oceânico, balanço invisível. Cor deles água-viva, preciosa mina no vazo dos montes, naso de família, como recordação e homenagem. Recorte preciso de onda, vírgulas nos campos, macias, ocre terra ruborizada, maçã com orvalho. Vasto vale e água descendo, pura, decidindo entre boca e abismo. Colônia de ovos sonhando-se larvas num futuro benquisto, colar de pérolas na praia, maresia. Odor de coral, conta infinita, folhas das paineiras, serenos ritmos, prolativos.
Mundo intenso e inteiro, indizível. Vaso coberto de calhas, minúsculas envergaduras refletidas, curvas perfeitas, naturais, robusta cena, conchas secretas do destino. Pulsar mordaz e severo, perseverança de inverno, matiz de noite enluarada, ligeiro desvelo cego da existência e o impossível silêncio das matinas. Vórtice absoluto, negro tigre voraz das vísceras consideradas, sexo das crianças sonolentas, pasmadas com o linguajar das cigarras, pontuais e ilícitas. Absoluta convergência, fim do nada.
Braços de lontra, curto espaço entre o ar e o artifício. Meio termo de esperança, flor de fim da tarde evitando a morte, carne de seus frutos, destilação completa do instinto, sobrevida. Mãos de batráquio, belas, fundamentais, alicerce das cavernas, pressão escandida das artérias. Dedos ventilados, penas de condor, alturas dos sons, confins e destinos do espírito, canoro canário. Pernas de anelídeo, flautas de naja, marimbondo em dias secos e quentes a espreitar que de consciência resta. Oportunismo de rapina, acaso esperto de pegadas, elástico das fibras de vime, vergastada no lombo da terra, ataúde dos desejos, pés de águia dourada.

Luz, pequena luz.

sexta-feira, maio 05, 2006

Malpighi

No último dia, a lembrança.
O cheiro forte o incomodava, ao mesmo tempo que lhe dava, providencialmente, uma justa sensação de placidez. A visão que se turvava era surpreendente, um claro magnífico fazia seu corpo pulsar, como um derradeiro instinto a buscar refúgio dos perigos da vida. Malogrado. Parado é que recebia a unção, forte carga de morte, moléculas complexas, sintéticas, simpatizando com suas células, irremediavelmente espalhadas por todo o corpo que respira.
Era possível, naquela hora, que perdesse completamente o controle das coisas, mas não, apenas deitou-se e deixou que a dor o tomasse, como imperativo de vida tão fútil, desregrada, desmerecedora de qualquer simpatia. Assim era o universo, só o que conhecera. Assim as milhares de microscopias que de nada lhe serviam ou interessavam, eram sua subsistência. E também, a dor não rivalizava com o frio, o intenso frio de um corpo que já se tornava incapaz de absorver qualquer coisa. Mexer as pernas, gastar tudo que tinha, nem era sua escolha, nasceu antes da concepção.
Mas agora precisava delas, a se aquecer por aquilo, aquele único aquilo que valia a pena ter antes de virar lixo. Sentiu que o esforço era tanto que suas vísceras tinham sido expelidas e já nem dor podia mais sentir. Qualquer coisa parecida consigo mesmo desaparecera, e no entanto, ele continuava ali, só se sabendo vivo pela brisa vinda do frenético balançar de suas pernas.
Daquilo valia a pena lembrar-se. Dela, aquela lembrança.
E agora, só tem a lembrança da lembrança, um maldito cheiro forte, que o incomoda.