sexta-feira, julho 04, 2008

ovo

Diante de mim, a obra completa. Incontáveis tomos reduzidos a um só. Tive o trabalho redobrado da vida inteira para transformar cada palavra, cada vírgula, em uma forçada memória. Tentei de todas as formas ser breve e justo. Breve ao resumir os feitos, pensar, do alto dos meus avançados anos, o que seria mais edificante para a humanidade, de tudo que vi, compreendi e julguei. Justo ao apresentar todos os lados de uma vida humana exaustivamente vivida, não apenas um auto-encômio a restar empoeirado numa das prateleiras de um caridoso amigo.
Agora, eis o livro, sua capa branca e as páginas, salpicadas de tinta formando as letras que foram minha vida. Poderia recitá-lo, sem nenhuma falha. Mas ao pensar nisso, angustio-me, revivo o grande desgosto de uma passagem, a insatisfatória resposta para um problema em outra, a cruel e crua ingenuidade de uma última, que tanto trabalho me rendeu para achar as palavras certas. Sinto-me um péssimo ator, não sabendo representar minha própria experiência, como, de resto, só se vive de verdade quando não se escreve. A vida inventada é posterior, facilitada para a digestão dos leitores.
Então, sobra-me a consolação de ser lido por quem me conhece, por quem quer me conhecer e encontra algo de interessante nos esconsos dos meus pensamentos desconexos. A esses, o meu perdão do prefácio era desnecessário, porque eles podem ler sem os óculos da arrogância, da soberba de achar que minha sintaxe é a sua, de penetrar minha memória, minha imaginação, quando na verdade, só vivi e escrevi porque queria conversar com eles, naquele âmbito onde qualquer conversa era impossível. Aquele que consegue entender o espaço entre as letras das minhas palavras, a esse minha dedicatória.
Alguns tiram-me o sono. Passo a reler e fazer anotações, emendas, numa tentativa frustrada de fazer com que me entendam, ou que não me entendam e nem tentem me entender. Para esses, fiz uma edição diferente. Cortei os capítulos maçantes, os óbvios, as referências, as hipóteses. Eles têm um manual, uma primeira-mão de gêneros diversos, uma leitura leve e até mesmo humorada, onde nada digo, de maneira muito convincente. Escrevi um livro tolerável, desconfio, para poder tolerá-los.
Outros ainda pretendem ler minhas palavras não por mim, mas para comprovar alguma idéia que já têm, algum falso esconderijo de valores e vícios para apenas desnudar todo o resto das minhas falhas e erros que, aliás, nunca omiti. Para esses, fiz um apanhado de termos, uma enciclopédia biográfica, onde apenas remeto a outros autores que, respeitosamente, servem-me para tirar o peso e o visgo da humanidade hostil que carrego e pretendo que se vá comigo para sempre.
Para aqueles que querem mais um personagem para sua coleção, desdobrei-me em transformar as notas de rodapé em argumento principal e entoar, a lira à mão, poemas sobre cada uma das pessoas que me rodearam, escritos em redondilhas amigas da récita. Os vilões são vilões, os heróis, heróis, e também fiz, com rimas e métricas mais elaboradas, versos para alguns mais complexos e arquetípicos sujeitos, para que esses leitores se detivessem e fizessem análises profundas de uma humanidade que sonham para si. Fiz de tudo, menos falar sobre mim mesmo, porque sei que toda minha obra será muito mais eloqüente do que minha pessoa, até mesmo para falar sobre a tal da minha pessoa.
Há também um último leitor, para quem nunca escrevi nada e que é, no final das contas, o único leitor. Severo e inclemente, para ele todas as palavras são excessivas, todos os adjetivos desnecessários, nenhuma idéia bem-concebida. Tampouco consegue achar no arranjo e seqüência, ainda que da mais elementar frase construída, qualquer coerência, qualquer nexo. Sua única intenção é reduzir os excessos, e ele toma isso como o trabalho de sua vida, sente que está reescrevendo a obra a cada parágrafo que apaga, a cada eliminação de um luxo rebuscado e retórico, a cada confusão ou incompreensão, tão pouco apreciada no mundo editorial. Sua má-impressão é a única impressão possível. A esse único leitor confio minha obra completa, aquela de tomos e tomos, nunca concluída. Só ele, de tanto lê-la, conseguirá reduzi-la a nada. Seu último grande feito será o de verificar que nem mesmo meu nome está bem na capa do livro e que meu único testamento é ser transubstanciado no trato digestivo das traças.
Aliás, como ele realmente bem me lê, fará de mim pergaminho.